fotografias de Cristina Pinto Pinto
www.blitz.aeiou.pt, 30 de Outubro de 2009
Há um caso de amor entre Mariza e o público português. Ontem à noite, no Coliseu do Porto, a fadista contou que o pai nasceu em Cedofeita... Saiba como correu a noite.
Na primeira de duas noites no Coliseu do Porto, o inevitável: sala mais do que cheia para receber a fadista que mais fronteiras quebrou entre Portugal e o mundo nos últimos anos, Mariza.
Quando se abrem as grandes cortinas azuis do Coliseu, onde se projectava à chegava a palavra "terra", irrompe do palco um vulto esguio e alto – muito alto – que é o de Mariza, que enverga um longo vestido azul que amplia a sua rara aparência de fadista. Pouco depois abre a voz e o encanto do público começa ali mesmo, sem grandes segredos ou feitiços, mas com sintonia total.
O centro das atenções ali é o último disco Terra, mas o palco da confidência abre-se caracteristicamente pela primeira vez com "Maria Lisboa", da eterna Amália, deixando no ar um notório respeito pela história do fado. E depois as canções vão-se seguindo, e dali até ao final é possível ver e ouvir muitos elementos estranhos a uma noite de fado: um baixo em modo quase slap, uma bateria, músicos com headphones ou auriculares, um órgão da Roland, um trompete, solos de percussão. Tudo muito profissional e cuidado, tudo acontecido ao pormenor.
Às tantas torna-se um pouco difícil perceber quando começa o espectáculo e termina o concerto, apesar da qualidade inegável dos músicos e da voz tecnicamente perfeita de Mariza. O que falta por vezes é o espaço para o improviso e a espontaneidade. Entre arranjos mais ou menos felizes, Mariza apresenta um disco de amigos e de viagens em "Beijo de Saudade" (com cheiro a Cabo Verde, não fosse esta uma canção que partilhou com Tito Paris), canta Florbela Espanca no poema "Vozes do Mar" (que explora os elementos do mar, da saudades, de Portugal e de Camões), busca inspiração na dupla Carlos Tê e Rui Veloso em "Morada Aberta" e toca o fado mais tradicional numa das canções que lhe é mais querida: "Fado Primavera". Volta a Amália para uma versão surpreendente e algo incaracterística de "Barco Negro" – com mais percussão que o habitual – e não muito depois chega um muito celebrado solo de bateria, mais conhecido aos concertos de hard rock que aos palcos do fado.
Mas nos músicos que acompanham Mariza há um que se destaque pela juventude e pela técnica: Ângelo Freire, que ao lado de Bernardo Couto deixa descansados aqueles que temem pelo futuro da guitarra portuguesa. É ele que brilha no habitual momento de fado instrumental (que Mariza chamou e bem de "guitarrada"), que fugiu um tudo ou nada para o país vizinho e para o flamenco, é ele que guia a banda pelos ritmos folclóricos de "Feira de Castro". Mas isso não surpreende: não são raras as vezes em que Mariza deixa o fado resvalar para outros territórios, na tentativa, quem sabe, de o fazer sair da sua área de conforto e abraçar o mundo com outras pertenças e perspectivas.
Mas foi também o conforto que levou Mariza a contar a história da sua vida, a forma como chegou ao fado. As memórias de cantar na casa de fados dos pais no Bairro da Mouraria e de ficar para lá da hora permitida a observar da porta do seu quarto os movimentos do fado pela noite dentro. "Tasco da Mouraria" sintetizou essas recordações de infância e gerou uma intimidade que só foi ultrapassada quando já em encore Mariza e meia banda apenas se soltaram as amplificações, desceram o palco e fizeram do coliseu uma verdadeira tasca. No melhor dos momentos da noite, o fado quase silente obrigou a um silêncio de respeito e admiração por parte dos presentes.
Quando Mariza lançou o convite para um pezinho de dança e repetiu "Rosa Branca" mesmo no fechar a cortina já tinha passeado a sua voz pelos corredores do coliseu, saudando o público e levando-o a uma de várias ovações em pé; já tinha contado que o seu pai nasceu no Porto, mais precisamente em Cedofeita, e já tinha cumprimentado a sua tia que apesar da idade não recusou levantar-se; já tinha interpretado "Gente Da Minha Terra"; já tinha ganho o público há muito muito tempo. Esteve sempre ganho, aliás. Quem ali veio já sabia ao que vinha, apesar de Mariza ter demonstrado surpresa por ver tanta gente. Entre tantas surpresas, o público celebrou o fado de Mariza e a fadista fez a corte que se exige. É um caso de amor eterno e nada parece indicar que esta relação termine tão cedo.
